Há um poema de Ferreira Gullar, O cheiro da
tangerina, em que uns versos sempre me inquietaram um pouco: “coisas de
bicho / não de plantas / (onde a morte não fede)”. Desde a primeira vez que li,
achei assombrosa – e talvez tenha ficado com uma certa inveja – a ideia meio
óbvia, meio nova, algo bonita, de que nas plantas a morte não fede.
Até isso, nas plantas, é poético, é bonito,
totalmente o contrário de nós. A morte humana fede, entristece, revolta, causa
outras mortes, evidencia ou dá origem a um fato histórico. A morte humana,
mesmo aquelas anônimas, não passa despercebida nunca: anônimo pode ser o nome,
mas não o corpo, não a putrefação, não a necessidade de dar destino à matéria.
Nesse sentido, o dessa triste necessidade, é bom a morte humana feder: a
despedida do corpo fecha um ciclo, encerra uma história, permite viver um luto
que um dia vai acabar.
O problema é uma morte que não fede, uma morte sem
corpo, um nome que paira no ar sem um chão ou cinzas em que se apoiar. E nisso
a ditadura militar do Brasil (1964 – 1985) e suas irmãs da Argentina e do Chile
têm um triste histórico: para ficar apenas em dois exemplos, é preciso sempre
lembrar que Zuzu Angel não pôde enterrar seu filho e Eunice Paiva não pôde
enterrar seu marido, ambos presos e “desaparecidos” em 1971.
No último sábado, 13/09, os jornais estamparam uma
notícia a um só tempo relevante e revoltante: o corpo de Francisco Tenório Jr.
foi identificado quase cinquenta anos depois de seu desaparecimento. Ele era
pianista e acompanhava Toquinho e Vinicius de Moraes em uma turnê pela
Argentina em 1976. Depois de se apresentar no Teatro Gran Rex, em Buenos Aires,
saiu do hotel Normandie para comprar cigarros e desapareceu. Segundo o G1, seu
corpo foi encontrado em 20 de março de 1976 em um terreno baldio e enterrado
como indigente, permanecendo desaparecido e não identificado por quarenta e
nove anos.
No livro Vinicius de Moraes: o poeta da paixão –
uma biografia, José Castello narra esse desaparecimento e o quanto Vinicius
e Toquinho foram em busca de respostas em hospitais, delegacias, embaixadas; o
quanto, com o auxílio do próprio Ferreira Gullar, inclusive, àquela época
exilado na Argentina, buscaram ajuda até do sobrenatural por meio de uma
cartomante quando os meios naturais não deram as respostas devidas.
É notável que essa notícia e esse ato de justiça
aconteçam dois dias depois que no Brasil o dia 11 de setembro ganhou um novo
fato histórico. É realmente notável que a família de Tenório Jr. possa, enfim,
fechar um ciclo e pousar seu nome depois que finalmente sua morte deixou de ser
anônima. É mais do que notável, é digno de registro que nosso acerto de contas
com um triste passado se dê ao mesmo tempo em que o Brasil faz justiça no
presente: na quinta-feira, 11 de setembro, pela primeira vez um ex-presidente
da república – e ex-capitão do exército –, três generais e um almirante foram
condenados por tentativa de golpe de estado e outros crimes. Criminosos
condenados, não cito seus nomes porque já não importam mais para a história do
Brasil.
O de Francisco Tenório Jr., sim.

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