12 setembro 2025

Padeiros, faraós e memórias

 



       

Todos nós gostamos de ver laboratórios, bastidores. Em tempos de redes sociais, gostamos também de acompanhar, curtir, compartilhar, invejar intimidades. O que está submerso numa imagem ou objeto público é sempre razão de interesse em todas as áreas da vida.

Embora também goste dos bastidores, tenho os procurado fora das redes, e dia desses, assistindo a um desses programas do tempo em que nem se sonhava com Instagram e seus filtros, encontrei Fernando Sabino, suando em bicas, falando sobre pães e pirâmides.

Explico: no Roda Viva de 1989, disponível no YouTube, assisti ao escritor relatando um conselho que recebeu de Guimarães Rosa: “Não faça pães, faça pirâmides”, referindo-se à produção de crônicas como gênero menor – ao rés-do-chão, diria Antonio Candido. Sabino não se queixava do conselho do amigo, mas advogou a crônica como gênero literário importante e com lugar cativo nos grandes da literatura brasileira, inclusive – argumento irrefutável – no maior: Machado de Assis.

Eu cá não tenho condições de advogar muita coisa, mas algumas observações sobre a fala de Rosa me parecem um pouquinho necessárias. A primeira diz respeito à importância dos gêneros menores para o trabalho de tentativa – e é bom ressaltar, sempre tentativa – de formação de leitores. E digo isso do ponto de vista profissional e pessoal.

Principio pelo confessional. As minhas primeiras memórias de leitura são as crônicas de Fernando Sabino. Ainda adolescente comprei diversos livros seus em sebos e feiras porque o tom íntimo de conversa me tragou para aquele universo que ele descrevia, tanto os de personagens inventados quanto aquele em que o personagem era o próprio autor: para além do tom de bastidores, a crônica desnuda uma certa maneira de fazer literatura que quase abraça o leitor e facilita sua permanência no terreno da leitura.

Sabino fez isso comigo: adolescente ainda, comprei uma máquina de escrever, já naquele tempo um objeto “vintage”, como agora se chama algo de velho de maneira educada, apenas para emular o jeito Sabino nas minhas primeiras tentativas literárias. Hoje essa máquina enfeita minha estante de livros ao lado da obra reunida do escritor mineiro como memória desse tempo de conquista.

Creio que a palavra é bem essa: conquista. Vejo a crônica conquistar primeiro sorrisos, sobrancelhas franzidas de reflexão, depois uma pergunta, um comentário: todos indícios de um leitor. Minha prática de professor de literatura abraça os textos de Sabino, Vinicius, Drummond, de muitos cronistas que me abraçaram. Algumas vezes, quando a angústia de abstinência do celular não atrapalha, vejo outros abraços acontecerem.

A segunda observação diz respeito à conexão entre padeiros e faraós: a crônica é uma porta, uma ponte, um elo e quantas mais metáforas de ligação se queira para os edifícios dos gêneros maiores. Volto à confissão: foram as crônicas de Sabino que me levaram aos seus dois romances que permanecem em constante estado de leitura pela vida afora: “O grande mentecapto” e “O encontro marcado”, nessa ordem. Ambos têm tantas referências, de tantas outras pirâmides, que o leitor se sente quase obrigado, intimidado a encará-las – no meu caso, com o “preparo físico” que as crônicas me deram.

Acredito que no caso de alguns alunos também. Não é raro vê-los caminhar de Veríssimo e sua crônica sobre a Metamorfose até a novela de Kafka sem grandes reclamações e sempre com os mesmo indícios: sorriso, sobrancelha, pergunta.

Talvez seja um ciclo, uma conexão misteriosa entre padeiros e faraós. Sonho com uma conexão perfeita entre os dois: mesmo na educação básica ir de Sabino a Rosa, de O estranho ofício de escrever a Grande sertão: veredas. Já ouvi de colegas que é um caminho longo demais para a educação básica. Sempre que ouço isso, penso na famosa frase do faraó: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”.

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