Leio nos jornais que Milton Nascimento foi
diagnosticado com um tipo de demência de nome complicado que o choque e a
tristeza da notícia não deixaram memorizar. Leio também, nas redes sociais do
filho, o relato preciso e dolorido de que ele está nos deixando aos poucos, de
suas dificuldades para comer e se comunicar.
Leio, leio, leio sobre o assunto até sentir algo que
não sei definir bem, mas tem a ver com um certo inconformismo junto a uma
tristeza e um adiantado e indevido pesar. Às perguntas que sucedem um
diagnóstico trágico, não respondi nada; pensei em enunciá-las aqui, mas não
combina com Milton essas indagações filosóficas de tristeza e revolta.
Então troquei o verbo. No lugar de ler, ouvir. Uma
das minhas primeiras memórias musicais é de minha mãe cantarolando e me dizendo
que amava Travessia. E foi justamente a essa canção que recorri para
reafirmar quem é Milton Nascimento e tudo que aquele sorriso de oitenta e dois
anos parece querer dizer, mesmo em meio a um diagnóstico cruel: soltar a voz
nas estradas, não querer parar, ter muito o que viver.
A limitação física e cognitiva torna-se muito pequena
diante de uma boa obra. E isso talvez seja um consolo: por tudo que vai nos
legar, o Milton Nascimento que se perpetuará na memória coletiva de seu país e
de seu povo é aquele da voz que leva à transcendência, das palavras que levam a
um lugar que só se pode acessar por meio do que não é comezinho, não é
ordinário, não é cotidiano.
A memória de Milton Nascimento, no fim das contas,
talvez tenha de mais valioso exatamente isto: a capacidade de utilizar nosso
cotidiano para nos levar além dele mesmo, abrir nossos olhos para enxergar
Marias que têm fé na vida, ver o valor de forjar no trigo o milagre do pão.
Em meio ao caos de tudo o que de ruim traz uma
notícia como essa, a voz de Milton continua sendo o nosso alento, nossa
esperança, nossa dose certa de afeto em meio a máquinas, juros e diagnósticos
ruins.
Há muito mais o eu escrever, mas além de eu não
conseguir, não é necessário. É preciso, mais do que escrever, viver nossa
consternação e lembrar que um grande artista está na sua limitação física e
cognitiva mas, paradoxalmente, mais do que nunca na plenitude de sua memória:
de tudo fazendo canção, faz resistir na boca da noite um gosto de sol.

Nenhum comentário:
Postar um comentário