10 outubro 2025

Milton e memória

 


Leio nos jornais que Milton Nascimento foi diagnosticado com um tipo de demência de nome complicado que o choque e a tristeza da notícia não deixaram memorizar. Leio também, nas redes sociais do filho, o relato preciso e dolorido de que ele está nos deixando aos poucos, de suas dificuldades para comer e se comunicar.

Leio, leio, leio sobre o assunto até sentir algo que não sei definir bem, mas tem a ver com um certo inconformismo junto a uma tristeza e um adiantado e indevido pesar. Às perguntas que sucedem um diagnóstico trágico, não respondi nada; pensei em enunciá-las aqui, mas não combina com Milton essas indagações filosóficas de tristeza e revolta.

Então troquei o verbo. No lugar de ler, ouvir. Uma das minhas primeiras memórias musicais é de minha mãe cantarolando e me dizendo que amava Travessia. E foi justamente a essa canção que recorri para reafirmar quem é Milton Nascimento e tudo que aquele sorriso de oitenta e dois anos parece querer dizer, mesmo em meio a um diagnóstico cruel: soltar a voz nas estradas, não querer parar, ter muito o que viver.

A limitação física e cognitiva torna-se muito pequena diante de uma boa obra. E isso talvez seja um consolo: por tudo que vai nos legar, o Milton Nascimento que se perpetuará na memória coletiva de seu país e de seu povo é aquele da voz que leva à transcendência, das palavras que levam a um lugar que só se pode acessar por meio do que não é comezinho, não é ordinário, não é cotidiano.

A memória de Milton Nascimento, no fim das contas, talvez tenha de mais valioso exatamente isto: a capacidade de utilizar nosso cotidiano para nos levar além dele mesmo, abrir nossos olhos para enxergar Marias que têm fé na vida, ver o valor de forjar no trigo o milagre do pão.

Em meio ao caos de tudo o que de ruim traz uma notícia como essa, a voz de Milton continua sendo o nosso alento, nossa esperança, nossa dose certa de afeto em meio a máquinas, juros e diagnósticos ruins.

Há muito mais o eu escrever, mas além de eu não conseguir, não é necessário. É preciso, mais do que escrever, viver nossa consternação e lembrar que um grande artista está na sua limitação física e cognitiva mas, paradoxalmente, mais do que nunca na plenitude de sua memória: de tudo fazendo canção, faz resistir na boca da noite um gosto de sol.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Professorado e quarta de cinzas

  Sem romantismos para quarta-feira: no dia quinze de outubro o Brasil comemora o dia dos professores, e nos dá até um ponto facultativo de ...