03 outubro 2025

O sono e o tempo

 


Em semiótica, a teoria das representações, que estuda os signos em todas as suas formas e manifestações, um símbolo é um signo que se refere ao seu objeto, dentre outras coisas, por meio de uma relação culturalmente estabelecida. Ver um berço virar cama é, independente da relação culturalmente estabelecida, algo que irrompe em símbolo do tempo.

Aprendi que o tempo se mede mais ternamente nos filhos. Ver a minha engatinhar, andar, correr, falar, já era, intrinsecamente, uma sonante medida de tempo, melodiosa mesmo em seus ruídos conhecidos e inusitados, não contabilizados, mas sentidos – de uma forma quase medrosa sentidos.

Pensei muito sobre isso quando vi outra medida de tempo se formar pelas mãos do marceneiro: o berço sobre o qual me debrucei algumas noites para ver se ela respirava, se estava acordando, o quão profundamente dormia, reparar nos traços em que me reconhecia, estranhar aquele fruto da natureza humana a suspender o tempo e criar silêncio enquanto dormia. De repente, esse mesmo berço se transmutou em cama.

A metamorfose, acompanhada discretamente por mim na soleira da porta, revela muito sobre o tempo e sobre o quão desigualmente passa. O tempo, vale lembrar, nas palavras de Caetano, “um senhor tão bonito / como a cara do meu filho”, por meio daquelas madeiras em curiosa combinação me informava que não só a cara da minha filha, bonita sempre, havia mudado, mas também seu sono.

Alguém já havia me falado sobre os discretos abandonos – sim, não há outra palavra – que pais e mães são obrigados a fazer ao longo da vida: o desmame, o primeiro dia de aula, a primeira coleta de sangue para exames... tudo com muito choro. A primeira noite sozinha no quarto, já numa cama, é mais um abandono que se impõe: eu pensava nisso enquanto via aquela cama tomar forma, a empolgação de Alice, os últimos traços de bebê guardados para sempre junto àquelas peças do berço, já não mais necessárias para a cama.

E aí compreendi o gênesis, como tudo tomou forma, como uma nova realidade se fez pelo poder da chave de fenda, do martelo e da palavra. E aí o quarto já não mais o mesmo, a vida se metamorfoseia junto: há um novo símbolo pulsando na casa.

O símbolo do berço transformado em cama: o sono, o tempo e o afeto.


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